Resenha: Bem- vindos à sociedade fabricada! Sejam felizes! (Isso não é uma escolha)

"O mundo agora é estável. As pessoas são felizes, têm o que desejam e nunca desejam o que não podem ter". p.264


        
            O livro traz como cenário nossa sociedade no futuro, numa época onde a ciência e a tecnologia evoluíram de tal maneira, que agora a humanidade é criada em laboratório. Evoluiu tanto, que o ser humano pode ser condicionado e programado física e psicologicamente, desde a fase embrionária. Na sociedade, os maiores princípios são Estabilidade, Comunidade e Identidade. Não existe mais tristeza, dor, ressentimentos, a felicidade está ao alcance de uma pílula. E certos valores antigos e desnecessários foram completamente abandonados, agora, a humanidade é autossuficiente. A única condição é que nossa sociedade finalmente chegou à distopiaEssas características constituem o cenário do livro Admirável mundo novo, de Aldous Huxley. Uma obra distópica, publicada em 1932 que representa, hipoteticamente, nossa sociedade no futuro, num tempo onde ela é dominada pela tecnologia, pela ciência e pela decadência.
             Na sociedade de Admirável, o ser humano é criado em laboratório, e as ideia de nascimento, de sistema vivíparo não existem mais. Ao serem produzidos, por meio da engenharia genética, os humanos são condicionados e predestinados a pertencerem em castas, que é como são divididos os grupos humanos e a função que cada sujeito ocupará na sociedade. As castas são formadas por Alfa, Beta, Gama, Delta e Ípsilon, cada uma é constituída por um padrão distinto das outras, possuindo graus diferentes de inteligência, capacidades, beleza. Os Alfa representam a elite, são criados individualmente e em menor número. Alfa é o grupo com os humanos mais inteligentes, altos, carismáticos, belos. Os Ípsilon, por sua vez, são criados em quantidades grandes de gêmeos idênticos para além de dois, três humanos iguais, mas numa média de até 96 ao mesmo tempo – esse é o processo Bokanovsky, um progresso da sociedade. Ao serem criados, os Ípsilons recebem menos oxigênio, isso os torna mais feios, miúdos e até mesmo retardados, ideais para trabalhos menores, como a manipulação de máquinas e engrenagens. 96 gêmeos idênticos, manipulando 96 máquinas idênticas.
   
   
            Após o controle realizado nas fases embrionária e fetal, onde se predestina a casta e certas características, os bebês passam por alguns procedimentos de manipulação psicológica, através de sistemas de condicionamento: o sistema de hipnopedia e o sistema neopavloviano. Dessa forma, são persuadidos com informações referentes à constituição moral, às aptidões e aos perfis psicológicos que terão, respectivos à casta a qual vão pertencer. Esses procedimentos, cujas tarefas são, respectivamente, a repetição de informações durante o sono e a manipulação por meio da dor, também condicionam o sujeito a estar satisfeito com a sua condição, independente de qual for. São maneiras de manter a estabilidade social.
            Nós acompanhamos Bernard Marx, Lenina Crowne e John. Marx é psicólogo, especialista em hipnopedia. Ele é um Alfa-Mais, mas diferente dos outros Alfas, é franzino, feio e até mesmo considerado estranho, por não seguir os padrões físicos e psicológicos de sua casta. Um boato que corre acerca de sua criação é que, enquanto ele estava condicionado, alguém o confundiu com um Gama e acrescentou álcool em seu pseudossangue, esse erro teria resultado em suas características físicas semelhantes às das castas inferiores. Como já falamos, não são apenas as características físicas que o distingue de outros Alfas, Marx pensa e sente alguns aspectos daquela sociedade de maneira diferente dos outros. É habitual que na sociedade de Admirável, as pessoas troquem constantemente de parceiros, já que o erro e a aberração seria manter relacionamentos duradouros. Nessa sociedade o sexo é o principal estímulo e a principal recompensa humana, praticado e incentivado desde que os sujeitos são bebês. Entretanto, Marx não tem uma vida sexual ativa como todos os outros, o que o transforma em chacota aos demais. Mas Marx se sente atraído especificamente por Lenina. Lenina é uma Beta-Mais, aplica vacinas no Centro de Incubação e Condicionamento e segue os padrões de sua casta (sai com diversos homens, sente-se satisfeita e consome muitas doses de Soma). Em certa ocasião, Marx convida Lenina para uma visita à Reserva selvagem. Ao mesmo tempo em que tenta se aproximar de Lenina, Marx também procura respostas às suas inquietações, já que ele olha para sua sociedade e para sua condição com olhos questionadores. Ele cogita possibilidades diferentes daquelas às quais as pessoas, e ele próprio, são condicionados desde a decantação. Os pensamentos de Marx divergem do fluxo que a sociedade de Admirável segue, e numa sociedade utilitária, onde cada sujeito têm uma função, Bernard Marx pensa como seria não ter utilidade nenhuma.
            
            A reserva selvagem se localiza em Malpaís, no Novo México. Lá as pessoas são a parte da humanidade que ainda é “primitiva”, que não passou pelas inovações científico-tecnológicas que a sociedade de Admirável construiu e passou. A reserva é o lugar que mais se assemelha com o mundo do nosso presente, lá ainda existem costumes, tradições, religiões, Deus. Na reserva, diferentemente do Mundo novo, não existe escape para a dor, para a velhice, e lá, o passado ainda é lembrado e cultivado. É quando Bernard Marx e Lenina viajam à reserva, mais especificamente para um Pueblo que vive lá, que conhecem John, O Selvagem. John é um jovem que vive na reserva. Ele é nascido, palavra extinta no Mundo novo, ao invés de ser criado e decantado em tubos e bocais, como as pessoas da sociedade civilizada. John foi gerado à maneira “antiga”, com um pai e uma mãe. Sua mãe chama-se Linda, mas a origem dela não é a reserva, ela é criação do Mundo novo, assim como Marx e Lenina. Após um período de expedição e convivência, Marx e Lenina decidem voltar à Londres, e convidam John para seguir viagem com eles.
           
         A chegada do Selvagem a Londres gera um grande tumulto na civilização, o interesse e a curiosidade das pessoas em torno daquela figura exótica tão distinta cresce cada vez mais. Entretanto, a euforia dura pouco e as divergências começam a gerar tensões. Quanto mais John conhece o mundo moderno, suas tecnologias, seus hábitos, mais isso lhe causa repugnância e desconforto. Vemos a partir desse ponto que existem dois polos distintos, com suas origens, culturas, práticas. De um lado uma sociedade excessivamente organizada, que procura manter a estabilidade a qualquer custo. De outro, valores parados no tempo, crenças e ideais sem qualquer tipo de formatação nova. Ambos os lados são extremos em suas convicções, mas resta saber, quem vencerá no final? E quais as possíveis consequências ao perdedor?
Algumas reflexões
            Vemos na sociedade de Admirável um avanço gigantesco em questões de ciência e tecnologia, mas alguns aspectos se tornam gritantes. O ser humano tornou-se um produto, fabricado em larga escala e submetido ao bem- estar e à estabilidade da sociedade, sem direito à liberdade. Mas o problema não é a ciência e a tecnologia em si, mas a maneira como elas são utilizadas por quem as comanda. No livro, a ciência e a tecnologia chegaram a um ponto onde se tornaram a condução que desumaniza a vida humana. A própria fabricação do ser humano é pensada visando mais a quantidade do que a qualidade, o processo Bokanovsky é um exemplo. Na medida em que se cria uma sequência tão grande de seres humanos idênticos, diminui-se a qualidade de pensamento, do raciocínio, entre outras características. Esses grupos quantitativos são melhor utilizados pela sociedade, para trabalhos mais pesados, como a manipulação de máquinas por exemplo. Esse é o primeiro passo para fortalecer a estabilidade, o segundo, é convencer as pessoas de que essa é a melhor alternativa.
            O controle da sociedade se fortalece na medida em que os seres humanos são criados com escolhas, ações, decisões e funções predefinidas. A estabilidade, na medida que torna esses seres humanos satisfeitos com suas condições, independente de quais sejam – que é o processo que a hipnopedia faz. Portanto, a sociedade estável de Admirável é criada, na medida em que a liberdade humana é anulada. A identidade, que junto da estabilidade e da comunidade formam o lema da sociedade Admirável, não se trata de o ser humano ser individual, mas de ser um com a sociedade. Diante disso, do condicionamento humano, o que é possível fazer para tornar as pessoas contentes e lhes dar uma falsa sensação de autocontrole? Além desses processos, temos ainda duas questões a mais. A primeira é o estímulo do sexo desde o que nós entendemos como infância. O sexo é o entretenimento de Admirável, serve como uma maneira de manter a sociedade “feliz” e focada. Outro elemento utilizado é o Soma, uma droga sintética que funciona como uma pílula de felicidade, ele proporciona a ausência da dor. Em baixas doses “amortece” qualquer sentimento que vá contra a satisfação imposta – dor, tristeza, raiva –, e em doses altas, induz uma espécie de coma. O ser humano de Admirável não pode sentir dor, tristeza, pois isso atrapalha o fluxo do estável.
            
            A vida de Admirável, é imediata, não vive o futuro, e muito menos o passado. O Soma alivia a dor e os sentimentos ruins de maneira imediata. Podemos olhar para a nossa sociedade e fazer algumas análises também. Esse imediatismo já não está presente nas nossas práticas e na convivência que temos uns com os outros? Se o celular demora para funcionar, o reiniciamos, se alguém demora para nos responder uma mensagem, ligamos, isso é um estímulo para o chamado mal do século – a ansiedade. Com a emersão da internet, de novas tecnologias e das possibilidades que elas nos proporcionam, desenvolvemos ainda mais a busca por facilidades, passamos a depender do software da velocidade. O autor reflete no prefácio que o livro vai falar sobre o futuro, e independente de suas qualidades artística ou filosófica, um livro assim só servirá ao interesse do leitor se suas profecias derem a impressão de poderem se realizar (p.10), o que fortalece ainda mais essa ideia, na medida que vemos certas características do presente como um início da tragédia. O autor desde o início enfatiza que na sociedade de Admirável, nada pode fugir da ordem. Se a família desestabiliza o ser humano, vamos criá-lo in vitro e acabar com esse conceito, se a tristeza desestabiliza o ser humano, criamos uma droga sintética que a anula. Se precisamos arrancar a liberdade do indivíduo, então vamos convencê-los de que essa é a melhor alternativa para o bem de todos. Nada pode sair do controle, tudo está em nome da estabilidade.
            Admirável mundo novo é apenas um livro de ficção, mas fala muito sobre nós, sobre nossas ações, sobre diferença, preconceitos e sobre como a humanidade poderia acabar com a humanidade. Um livro sobre futuro, mas principalmente, sobre o presente. Uma obra clássica distópica, leitura obrigatória desse gênero. 


Categoria:Cultura